Por Mateus Vilar
Schuler (@reportermateus)
Há 42 anos, a
seleção brasileira conquistava o tricampeonato de futebol mundial, no México.
Sendo a primeira a conquistar o título três vezes, desde que o campeonato fora
criado, em 1930, teria o direito de trazer para o solo brasileiro a taça Jules
Rimet. A seleção brasileira de futebol de 1970 foi considerada por muitos a
maior de todos os tempos. Ao arrematar em apoteose a taça, tomou para si o
estigma de um feito heroico, num espetáculo transmitido pela primeira vez para
o povo brasileiro através da televisão. Com forte cobertura na mídia de então,
a vitória da seleção brasileira em 1970 foi usada como instrumento de
propaganda do regime militar. Nunca o futebol seria tão bem explorado como
propaganda de um governo no Brasil como o foi em 1970. A taça Jules Rimet foi
erguida pelo próprio presidente de então, Médici.
Presidente Médici erguendo a taça
Um dos anos mais
tensos da história do Brasil foi 1970, além do próprio regime militar
implantado em 1964. No ano anterior, as guerrilhas urbanas eclodiram pelo país.
O sequestro de um embaixador norte-americano pela esquerda oposicionista
revelou ao mundo o que até então os militares negavam veementemente, a
existência de tortura no país. O ano da Copa começou com outro sequestro da
esquerda, o do cônsul japonês, Nobuo Okushi. Iniciava-se aí uma sangrenta caça
aos guerrilheiros. A finalidade era caçar todos e eliminar, numa condenação à
revelia a uma pena de morte pré-determinada.
Momentos antes do
início do campeonato, João Saldanha - técnico que classificara a seleção para a
competição - foi afastado por motivos políticos, sendo substituído por Mário
Jorge Lobo Zagallo, o popular Zagallo. Feitas as arestas ideológicas, o Brasil
entrou em campo, eliminando todos os adversários, numa atuação antológica de um
elenco luxuoso com Pelé, Tostão, Rivelino, Jairzinho, Gérson e Carlos Alberto
Torres entre outros. Enquanto o povo delirava com os gols, a economia atingia o
auge do que se chamou “Milagre
Econômico”, mostrando um
país próspero e feliz. Nas celas os presos eram torturados, mortos e
desaparecidos. Nas rádios o hino da copa ecoava para os noventa milhões de
brasileiros: “Pra frente Brasil!”. A máquina de propaganda do
regime militar nunca foi tão bem-sucedida como naquele ano, tendo como elemento
principal a vitória da seleção e a imagem heroica dos seus jogadores. Comparado
à história contemporânea, o uso da imagem da seleção brasileira do
tricampeonato só perdeu para a propaganda do regime nazista, nas Olimpíadas de
Berlim, em 1936, também veiculada via rádio.
Capitão Carlos Alberto Torres
e Presidente Médici erguem a taça
Na época da Copa
de 1970, o Brasil vivia o auge do que foi chamado de “Milagre Econômico”, que aconteceu de 1969 a 1973,
coincidindo com o governo do presidente general Emílio Garrastazu Médici. O
milagre econômico proporcionou o aumento do PIB, que atingiu um crescimento
anual de cerca de 10%, e uma inflação estabilizada em 18%. A produção
industrial aumentou, proporcionando melhores níveis de emprego. A época
coincidia com os juros baixos no mercado internacional, que passava por um
momento de tranquilidade, investindo fortemente nos países em desenvolvimento, visando
os grandes recursos naturais dessas nações como fiança aos empréstimos
concedidos. Também as multinacionais faziam os seus investimentos no país. A
facilidade de créditos internacionais levaria o Brasil a contrair, na época do
regime militar, a maior dívida externa da sua história. Durante o milagre, as
indústrias automobilísticas foram as que mais cresceram no país, gerando muitos
empregos, e consequentemente, levando desenvolvimento a outros setores. Diante
da prosperidade que parecia infindável, o governo militar aumentou a
arrecadação de impostos.
Para justificar a
continuação da sua ilegitimidade e permanecer no poder, os militares investiam
em fortes campanhas de propaganda. Frases que evidenciavam a exaltação militar
eram vinculadas nas rádios, televisões e jornais, como “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, “Ninguém Segura Este País” ou “Pra Frente Brasil”. A propaganda era estimulada
através da música, de programas de televisão, jornais, revistas e rádios.
Aproveitando-se da facilidade dos empréstimos internacionais, o milagre
econômico gerou a era das obras monumentais, como a construção da
Transamazônica, da ponte Rio-Niterói, da usina nuclear de Angra dos Reis, de
barragens gigantescas, como a de Itaipu. No avesso da era do milagre, que
beneficiou apenas a uma classe média emergente, estavam os arrochos salariais,
favorecendo poucos capitalistas brasileiros e essencialmente, aos capitalistas
de multinacionais. Os grandes investimentos estatais em obras colossais geraram
mais o endividamento do país do que empregos seguros. Durante o período, houve
quase que um abandono do governo aos programas sociais.
O fim do milagre
aconteceu em 1973, com a crise do petróleo, que acabou com o combustível barato
e gerou uma das mais agudas crises da econômica mundial. Na época o Brasil
dependia da importação de 80% do petróleo consumido internamente. A dívida
externa, que em 1967 era de U$ 40 bilhões, chegava em 1972, quando o milagre já
estava no fim, a 97 bilhões de dólares. Nos bastidores da ditadura militar,
nunca a contestação ao regime atingira tanta violência. Com a promulgação do
Ato Institucional 5 (AI-5), em dezembro de 1968, ficaram suspensos todos os
direitos de habeas corpus a quem se opusesse ao regime ou
fosse por ele declarado suspeito. O resultado foi o surgimento de organizações
de esquerda que optaram pela guerrilha como forma de combater o regime militar.
Entre as organizações que pegaram em armas estavam a Ação Libertadora Nacional
(ALN), de Carlos Marighella; o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Carlos Lamarca.
Em setembro de
1969, os guerrilheiros sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke
Elbrick. A operação foi um sucesso, resultando na troca de quinze presos
políticos pelo embaixador. Os prisioneiros foram postos em um avião e levados
ao exílio. A vitória foi também política, pois evidenciou a prática da tortura,
tantas vezes negada pelo regime militar. Em março de 1970, outro sequestro
seria realizado, o do cônsul japonês Nobuo Okushi. Mais uma vez o Brasil e o
mundo assistiram ao embarque de presos políticos para o exílio. A humilhação
levou o regime militar a usar como lema da sua propaganda política a máxima “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, numa alusão à expatriação dos
presos políticos, que perdiam direito à nacionalidade brasileira.
A resposta do
regime militar aos sequestros foi rápida e violenta. Em novembro de 1969, o
líder da ALN, Carlos Marighella, foi morto em São Paulo. A Operação
Bandeirantes (Oban) institucionaliza a tortura, prendendo e matando lideranças
de esquerda, acossando cada vez mais os opositores ao regime. Em janeiro de
1970, foram criados os Centros de Operações para a Defesa Interna (CODI), e os
Departamentos de Operações Internas (DOI), que juntos formaram o DOI-CODI,
responsável pela prisão, tortura e morte de centenas de líderes da oposição. O
cenário para ver a seleção brasileira brilhar na Copa de 1970 estava pronto. O
de terror nos cárceres da ditadura também.
O presidente
Emílio Garrastazu Médici, que entrou para a história como o mais truculento e
de linha dura do regime militar, assumia diante do povo a imagem do pai da
nação, preocupado com o bem-estar moral da população e o progresso do país.
Fazia parte do pacote a sua paixão pelo futebol, chegando a intervir na própria
concepção da seleção brasileira. Médici fazia questão de integrar a imagem do
governo com a do futebol, que na época tinha em campo o maior jogador do mundo,
o incomparável Pelé. Em 1969, o Brasil aguardava com ansiedade o milésimo gol
de Pelé. Quando o rei do futebol conquistou o seu feito, foi recebido em
Brasília pelo presidente. Em novembro daquele ano, Pelé desfilava pela capital
em carro aberto. Médici encerrava a apoteose do ídolo concedendo-lhe a medalha
do mérito nacional e o título de comendador. Era apenas o início do namoro
entre a propaganda política do Estado e o futebol brasileiro.
Craque do certame, Pelé ergue a taça
A escalação da
seleção que iria ao mundial de 1970 enfrentou vários problemas de percurso.
João Saldanha foi o técnico que depois de uma árdua e sofrida luta, conseguiu
classificar a seleção para a copa. Durante a escalação, espalharam-se rumores
de que o presidente Médici queria ver o jogador Dario, o Dadá Maravilha,
escalado. Os boatos, jamais confirmados oficialmente, irritaram João Saldanha,
que declararia à imprensa uma de suas mais contundentes frases: “O presidente escala o ministério dele que eu escalo o
meu time”. João Saldanha
foi, em seguida, demitido da seleção, pouco antes de ela seguir para o campeonato no México, sendo
substituído por Mário Jorge Lobo Zagallo.
O motivo da
demissão de João Saldanha ia muito além da sua declaração intempestiva.
Suspeito de simpatizar e militar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), o
governo temia que o técnico chegasse ao México com uma lista de presos
políticos no bolso, e que, em entrevistas coletivas, denunciasse para o mundo a
tortura e o desrespeito aos direitos humanos que o regime militar infringia
ilimitadamente. Resolvido o grande impasse político, a seleção, sob a tutela do
técnico Zagallo, partiu para o México, em busca do tricampeonato do mundo,
entrando de maneira mítica para a história do futebol brasileiro.
De 31 de maio a 21 de junho, a Copa do Mundo de 1970 foi
disputada no México. No dia 3 de junho de 1970, o Brasil disputava a sua
primeira partida no Estádio Jalisco, em Guadalajara, contra Tchecoslováquia. No
campo desfilavam Pelé, Jairzinho, Tostão, Rivelino, Gérson, Piazza, Clodoaldo e
tantos outros que seriam apontados como os componentes da maior seleção de
todos os tempos. O Brasil venceria a Tchecoslováquia por 4-1. Em 7 de junho,
venceria a Inglaterra por 1-0. Em 11 de junho, venceria a Romênia por 3-2,
passando para a segunda fase de forma magnífica, empolgando o país e o mundo.
Time-base da seleção brasileira
No Brasil, o povo
acompanhava a seleção em jogos transmitidos pela primeira vez pela televisão. O
impacto era visível. Poucos privilegiados deram-se ao luxo de ver a transmissão
em cores, adiantando-se em dois anos à chegada da tecnologia ao país, que se
confirmaria em 1972. No meio da vibração do povo, ecoava com grande sucesso por
todo o país, o hino da copa, “Pra
Frente Brasil”, autoria
de Miguel Gustavo.
O sucesso do hino
e a empolgação extasiante do povo fizeram com que o governo começasse a usar a
seleção como objeto de propaganda política. Paralelamente, no dia 11 de junho
de 1970, em plena Copa, os guerrilheiros executavam um novo sequestro, desta
vez ao embaixador alemão, Von Holleben. O regime recrudesceu ainda mais,
abarrotando as celas de presos políticos, intensificando a tortura e o número
de mortos e desaparecidos.
Em 14 de junho, a
seleção brasileira derrotava o Peru por 4-2. Em 17 de junho derrotou o Uruguai
por 3-1, passando para a fase final. No dia 21 de junho de 1970, o Brasil
enfrentava a Itália, na Cidade do México. Numa das partidas mais emocionantes
da história do futebol brasileiro, venceu os italianos por 4-1, tornando-se
tricampeão mundial. Apagava de vez a fraca atuação na copa de 1966, na
Inglaterra. O último título tinha vindo em 1962, no governo democrático de João
Goulart. O Brasil assistia em frente à televisão, o capitão da seleção, Carlos
Alberto Torres, a erguer a taça Jules Rimet, um troféu com quase quatro quilos
de ouro.
Revista "O
Cruzeiro" valorizando o tricampeonato
“Noventa Milhões em
ação,
Pra frente Brasil,
Do meu coração...
Todos juntos
vamos,
Pra frente Brasil,
Salve a seleção!”
“De repente
É aquela corrente
pra frente
Parece que todo
Brasil deu a mão...
Todos ligados na
mesma emoção...
Tudo é um só
coração!”
Lista da Seleção de
1970
Carlos Alberto Torres
|
Jair Ventura Filho (Jairzinho)
|
Clodoaldo Tavares de Santana (Clodoaldo)
|
Joel Camargo (Joel)
|
Dario José dos Santos (Dadá Maravilha)
|
Jonas Eduardo Américo (Edu)
|
Edson Arantes do Nascimento (Pelé)
|
José de Anchieta Fontana (Fontana)
|
Eduardo Gonçalves de Andrade (Tostão)
|
José Guilherme Baldocchi (Baldocchi)
|
Eduardo Roberto Stinghen (Ado)
|
José Maria Rodrigues Alves (Zé Maria)
|
Emerson Leão (Leão)
|
Marco Antônio Feliciano (Marco Antônio)
|
Everaldo Marques da Silva (Everaldo)
|
Paulo César Lima (Paulo César Caju)
|
Félix Miéli Venerando (Félix)
|
Roberto Lopes de Miranda (Roberto Miranda)
|
Gérson de Oliveira Nunes (Gérson)
|
Roberto Rivelino (Rivelino)
|
Hércules Brito Ruas (Brito)
|
Wilson da Silva Piazza (Piazza)
|
Carlos Alberto Torres ergue
taça após vitória de 4-1 sobre a Itália na final
Vídeo com os gols da final